José Maria Nóbrega: Por que o Brasil não consolida a sua democracia?

Foto: Divulgação

Há uma ideia hegemônica de que a democracia no Brasil está consolidada. Discordo desta avaliação. O Brasil é uma semidemocracia, ou seja, um regime político de democracia “imperfeita”. Por definição, um regime híbrido com traços autoritários em muitas de suas agências estatais, com destaque àquelas responsáveis pela segurança pública e jurídica.

Confunde-se democracia com eleições. Democracia consolidada preenche os seguintes requisitos: eleições livres, periódicas, limpas e institucionalizadas; amplo sufrágio; garantias e salvaguardas constitucionais as liberdades básicas; controle dos civis eleitos sobre as forças armadas e de segurança; independência do judiciário; ausência de áreas dominadas pelo crime organizado; e controle da violência e da corrupção. O não preenchimento desses requisitos, fragiliza a democracia.

O Brasil preenche os requisitos eleitorais e parte de algumas poucas salvaguardas liberais. O país apresenta eleições regulares que preenchem o requisito eleitoral da democracia, não resta dúvidas a respeito disso, por mais que uma parte da elite política contradiga a dimensão eleitoral da democracia, ou melhor, da semidemocracia brasileira. No entanto, as principais plataformas de avaliação e classificação de regimes políticos do mundo classificam o Brasil em uma zona intermediária semidemocrática na qual os preceitos eleitorais são os mais bem avaliados, porém, os requisitos ligados ao Estado de Direito, ou seja, às instituições ligadas às garantias dos direitos básicos (civis e políticos) encontram grandes dificuldades.

É aí que se encontram as causas da não consolidação da democracia brasileira, geralmente negligenciada pelos analistas políticos e jornalistas comentaristas da política nacional.

Um Estado de Direito usável é aquele no qual os cidadãos de uma democracia, independentemente de suas diferenças, são tratados e vistos de forma igualitária pelas instituições (agências e regras) do Estado. Todos são iguais perante às leis, todos têm acesso fácil e irrestrito à justiça e o Estado e seus agentes não enxergam diferenças na hora de aplicar a lei e a ordem.

Seguindo este raciocínio e colocando em foco às instituições e agências do poder coercitivo estatal brasileiro, analisarei alguns requisitos fundamentais do Estado de Direito nacional em relação a qualidade de sua democracia para entender e explicar o porquê do Brasil não conseguir consolidar a sua democracia, não obstante eleições regulares que preenchem o requisito eleitoral.

Serão analisados os conceitos e indicadores de: Justiça Criminal, Investigação Criminal, taxas de homicídios, mortes decorrentes de violência policial e presença de crime organizado.

A Justiça Criminal é um indicador que mede a capacidade do Estado de Direito em: sistema de investigação criminal; sistema de prisão de criminosos; sistema carcerário; justiça independente e imparcial; poder de controlar à corrupção; sistema de justiça criminal livre da influência de governos; garantir a ampla defesa dos entes acusados.

A avaliação desse conceito em seu indicador é mensurada em um fator entre 0 (incapacidade total) e 1 (eficiência total). Sabemos que a média desse indicador nas democracias consolidadas é de 0,76, que a mesma média nas semidemocracias latino-americanas é de 0,40 e que o índice do Brasil é de 0,34, ou seja, classificado como um regime no qual é incapaz de aferir um sistema de justiça criminal eficiente e eficaz.

Portanto, o índice do Brasil em seu sistema de justiça criminal é abaixo da zona intermediária e muito aquém das democracias mais consolidadas. Isto nos explica a dificuldade tremenda que o país tem de controlar a violência e a corrupção.

Quando o índice de Estado de Direito é a investigação criminal – indicador que mede a capacidade das instituições de segurança e justiça em acusar e prender criminosos, se a polícia, investigadores e promotores possuem recursos adequados, se estão livres de corrupção e se desempenham as suas funções com competência -, o resultado é ainda pior, ficando com o score de 0,28, abaixo do score de justiça criminal. Ou seja, o Brasil não investiga crimes na prática, o que explica boa parte dos homicídios, da violência policial e do descontrole do crime organizado e sua aliada, a corrupção.

As taxas de homicídios são o principal indicador de violência. A média mundial de taxas por cem mil habitantes é de 6/100 mil. A média das Américas, incluindo aí Estados Unidos e Canadá, é de 17/100 mil. A da América Latina é de 24/100 mil. E a do Brasil é de 27/100 mil. Ou seja, maior que a média da região. Em algumas cidades brasileiras, as taxas por cem mil habitantes é mais de mil por cento acima da média mundial. Cidades como Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana do Recife, e Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador, são verdadeiras zonas de guerra em suas periferias, onde vive a maioria da população. É uma situação falimentar do Estado de Direito. Ou seja, falência da capacidade do estado democrático de direito, mesmo existindo eleições regulares.

Outro fator importante, a total incapacidade dos seus órgãos de segurança para a garantia da vida, requisito básico do Estado de Direito. Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), foram 24.327 mortes resultado de ações policiais no Brasil de 2013 a 2018 . Uma média de 4.055 mortes ao ano, com 2.212 mortes em 2013 e 6.220 em 2018.

Por último, a incapacidade do Estado brasileiro em controlar o crime organizado. Este que se infiltrou com força na sociedade, na economia e na política retroalimentado pela corrupção.

Na década de 1980 tínhamos apenas uma grande facção criminosa, o Comando Vermelho. Passados mais trinta anos da redemocratização, temos dezenas de facções criminosas espalhadas pelos presídios do país, estes totalmente descontrolados. Não existe Estado de Direito sem Estado como monopólio da força.

Com a hegemonia do Primeiro Comando da Capital e do Comando Vermelho, as demais facções – aliadas do PCC, aliadas do CV e neutras – mandam e desmandam nas comunidades do país onde os eleitores mais necessitados de políticas públicas se encontram.

Sabemos que não tem como o crime organizado florescer e se desenvolver sem a presença da corrupção e da violência. E sem o controle destas pragas sociais dificilmente há consolidação da democracia e, por tais causas, o Brasil não consegue consolidar a sua democracia e, pelo que parece, as suas elites, de esquerda e de direita, não tem esse interesse.

José Maria Nóbrega – Doutor em Ciência Política pela UFPE

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *